Meia Banda lança Meio Disco

Por Raisa Christina

A sombra lilás de um ipê dança pelo chão e nos convida a atiçar os ouvidos. Assim começa o Meio Disco, segundo álbum da Meia Banda, um projeto de Bruno Di Lullo com Domenico Lancelotti, Eduardo Manso e Estevão Casé. Outras parcerias e participações mais que especiais se multiplicam ao longo das cinco faixas: Alberto Continentino, Tomas Cunha Ferreira, Bem Gil, Moreno Veloso, Marcelo Callado, Tainá Machado, Raquel Dimantas e Thomas Harres. 

O primeiro álbum, lançado em 2016, é uma espécie de fruta rara cujo sabor se aprofunda no decorrer dos anos. Aqueles que saborearam tal fruta aguardavam ansiosos o momento de uma nova colheita.   

“Ipê” é a faixa de abertura do Meio Disco, assinada por Alberto, Tomas e Bruno. A canção propõe a escuta de claridades e sombras que bailam junto a ramos, arbustos e árvores, numa coreografia circular sobre o corpo da terra. Apesar do dia luminoso e da melodia solar, há tempos não festejamos. Ao final da faixa, surge uma voz indecifrável: Iba Sales Huni Kuim nos convoca, numa das poucas línguas sobreviventes ao genocídeo indígena no Brasil, a dar ouvidos à floresta.

Na sequência, “Chuva forte” vem arranhando com linhas e manchas escuras a cidade que anoitece. A cadência lenta dos versos é a mesma dos traços certeiros. Ambos deixam vislumbrar camadas de espaço urbano encharcado pela chuva que se confunde com o líquido das tintas, denunciando o “sentimento sobre o papel”. A música, uma parceria de Bruno com Domenico e Alberto, estabelece uma relação intrínseca com a estética sombria e contrastada das gravuras de Oswaldo Goeldi. É impressionante perceber o quanto a canção toca o espírito noturno presente no coração da obra do gravurista. 

“A solidão” é a terceira faixa e, apesar do título, converte-se no ponto lúdico do disco. As rimas se ancoram no encontro vocálico mais característico do português, aquele “ão” que nos faz abrir a boca como quem precisa aspirar o máximo de ar antes do mergulho. A guitarra distorcida, os teclados coloridos e os vocais tão doces de Bruno, Raquel e Tainá nos levam a cruzar os ares agarrados à flecha veloz..

Em seguida, chegamos à “Arara”, canção de Domenico. Estamos novamente na mata, num fim de tarde, desta vez no alto dos troncos onde as aves encontram cavidades e fazem morada. O acasalamento das araras também fala de nós, que certas vezes ardemos, avermelhados como urucum, sentindo “o tremular do nosso amor”. O tom agudo do vocal remete às linhas verticais, às alturas, à copa das árvores, e pulsa e vibra e ecoa tanto nas sílabas finais de algumas estrofes como nas extremidades de nossos membros.

“Paranapuã” é a última faixa do disco, uma parceria de Bruno e Domenico. Inspirada na leitura do livro “O rio antes do rio”, de Rafael Freitas Filho, a música surge a partir dos relatos que remontam às aldeias dos nativos da costa carioca no embate com os primeiros colonizadores franceses e portugueses. A veia eletrônica dos sintetizadores se mescla à percussão orgânica e juntas instauram uma atmosfera que atualiza um pedaço de nossa história referente aos antepassados da misteriosa Ilha dos Gatos. 

O disco é breve, mas torna-se mantra. As músicas se expandem repetidas vezes por nossos territórios físicos e imaginários. Ouça aqui.

Por Tomás Cunha

Dizem que as canções andam por aí, pelo ar, e que o trabalho dos músicos é captar uma a uma cada melodia, cada toada, até que a semente e o sonho tomem forma e vitalidade musical. Fazemos uma canção para aprendê-la, e então lançá-la de novo no ar. Os instrumentos da banda e os cocares da tribo são parabólicas atentas aos sinais. Stevie Wonder também falou sobre isso quando disse que as folhas das árvores são antenas que alcançam além das galáxias, e talvez o maior mistério da música seja o quão de longe uma canção pode vir, e o quão perto ela chega, o quão fundo toca em nós. Escutar o Ibã Sales no final da canção “Ipê”, ecoando com as vozes de Bruno e Moreno, com os instrumentos de Alberto, Manso e Domenico, é um jeito de nos aproximarmos da imaginação da árvore, da imaginação do universo, do multiverso, da minha e da sua. O disco da Meia Banda abre com vibrações do Ipê, e cada canção vem chegando como ramos de um tronco, ou braços de um só rio, que deságua e ressoa para lá da última nota musical.

Sobre os integrantes

Bruno Di Lullo

Bruno Di Lullo, baixista, compositor e produtor musical, é integrante da banda Tono, conhecido por seu autêntico baixo amoroso. Acompanhou artistas como Gal Costa, Gilberto Gil, Adriana Calcanhoto, Céu, Silvia Machete e Jorge Mautner. Têm composições gravadas por Ava Rocha, Alice Caymmi, Mãeana e Iara Reno, dentre outros.

Estevão Casé

Produtor Musical do selo Rockit, engenheiro de som de artistas como Gal Costa, Legião Urbana, Dado Villa-Lobos, Tiê, Domenico Lancellotti. Trabalha há 8 anos no estúdio Rockit onde produziu álbuns de diversos artistas como Negro Leo, Opala, Seletores de Frequência.

Domenico Lancellotti

Domenico Lancellotti nasceu em Niterói no início dos anos 70. Músico, compositor, também já trabalhou como cenógrafo, artista plástico, produtor musical e cozinheiro.

Junto a Moreno e Kassin, formou o projeto “+2” (com 5 discos lançados). Junto a outros 18 músicos fundou a Orquestra Imperial (com 2 discos, 1 single e 1 DVD lançados). 

Foi integrante do Grupo “Mulheres que dizem sim” (com 1 disco lançado). Integra os grupos “Os Ritmistas” (com 1 disco lançado), “Vamos estar fazendo” duo de improvisação junto a Pedro Sá,  “Taksi” duo de improvisação eletrônica com João Brasil e “Meia Banda” com Bruno Di Lullo (com 1 disco lançado).

Colaborou com Adriana Calcanhotto, Caetano Veloso, Fernanda Abreu, Chrissie Hynd, Marisa Monte, Jorge Mautner, Arto Lindsay, Gal Costa, Gilberto Gil, Ruben Jacobina, Danilo Caymmi, Zabelê, Quarteto em Cy, Quarteto Jobim, entre outros.

Compôs diversas trilhas para teatro, dança, TV. Produziu discos de Danilo Caymmi, Michele Leal, Zabelê.

Ainda lançou 2 livros de poesia pela editora 7 letras, e seu primeiro disco solo  “Cine Privê” saiu em abril de 2011.

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