2019 foi um ano marcado pela estreia e sucesso de muitas mulheres no cenário da música, em especial no cenário latino. Despontado como principal nome da cena em 2019, Rosalía, que apesar de ser espanhola, diretamente de Barcelona e estabeleceu-se entre os seguidores da música de um modo geral. Saindo da mesmice instalada por dezenas de artistas da América Latina, Rosalía descartou qualquer tipo de faixa com gênero popular de sua produção, nos entregando o que arriscamos chamar de o melhor e mais verdadeiro álbum artístico da década.
“El Mal Querer” foi lançado em 2 de novembro de 2018, chegando com uma proposta de ser trabalhado em forma de arte do princípio ao seu fim. Na capa, Rosalía nos impacta com elementos renascentistas e exalta a imagem da mulher como ser divino, sem sabermos que a figura retratada no álbum estava prestes a sofrer um verdadeiro inferno em vida.

O disco que reúne elementos de flamenco, cultura cigana e lirismo, teria sido baseado em um conto de romance escrito no século XIV, nomeado de “Flamenca“, sendo adaptado e reimaginado por Rosalía em seu segundo disco de estúdio.
O conto fala sobre um casal, uma mulher que é forçada e fadada a um casamento falho, repleto de repressões, agressões físicas e morais por seu marido e algoz. Baseado na cultura cigana, muito forte principalmente em Sevilha, Andaluzia, Rosalía retrata cada faixa como um capítulo mostrado pelas cartas de tarô, elemento utilizado na magia e cultura dos ciganos para prever o futuro.
CAPÍTULO 1: O Augúrio / Agouro
Augúrio ou agouro, do latim augurium, é o nome da forma de profecia lida pelos romanos antigos, que através do canto e voo das aves, eram capazes de prever o futuro e possíveis desastres. O capítulo introduz a música “Malamente”, inspirada na cultura espanhola e também na cigana. o prólogo dá-se como o mal presságio para a vida persona retratada no álbum, sendo o grande ato de abertura da tragédia romântica. “Malamente” foi a faixa de maior destaque do disco de Rosalía.
CAPÍTULO 2: Boda / casamento
O segundo capítulo/faixa do disco é nomeado como “Boda“. “Que No Salga La Luna” é outra canção inspirada na cultura flamenca e cigana, que retrata o casamento da persona do disco com seu esposo. Na música, é possível ouvir uma grande celebração ao fundo, que ocorre durante o casamento. Apaixonado, o marido contempla sua mulher.
“Que bonita está minha noiva, que dê a ela um trono. Coroa de brilhantes, cravadas com perolas e ouro.”
Baseado em ‘Mi Canto Por Bulerías’ de La Paquera de Jerez, o episódio que deveria simbolizar uma alegria na vida da mulher, já exibe os traços agressivos de seu esposo.
“Se alguém aqui é contra a esse casamento, não levante a voz“
A arte escolhida por Rosalía é fortemente retratada e inspirada na pintura de Frida Kahlo, “Las Dos Fridas”, que a artista mexicana pintou após o divórcio de seu esposo Diego Rivera, mas no ato artístico escrito por Federico Garcia Lorca, a arte também poderia representar “Bodas de Sangre”, originalmente lançada em 1932, na cidade de Madrid.


CAPÍTULO 3: Celos / Ciúme
No terceiro capítulo intitulado “Celos”, a persona começa a sofrer os sintomas de uma relação abusiva por parte de seu parceiro, começando a ser abandonada pelo mesmo, enquanto ele anda pelas ruas desacompanhado. Rosalía entrega sua interpretação de “Pensa En Tu Mira”, a primeira com uma atmosfera mais pop/hip-hop.
CAPÍTULO 4: Disputa
No quarto capítulo do disco, Rosalía demonstra que a mulher recitada no “El Mal Querer” começa também a se rebelar e se tornar agressiva com seu parceiro, questionando as infidelidades e falta de afeto, tanto como mulher e esposa. “DE AQUÍ NO SALES” retorna ao estilo flamenco/gitano, ritmo bem presente em todo o disco.
“Quero deixar bem claro, posso te dar uma tristeza amarga, mas também tenho doces .”
O capítulo introduz a primeira briga de agressões físicas do casal, é também a faixa e videoclipe em que o timbre da cantora se intensifica e sua postura corporal mudam, para demonstrar agressão, brutalidade e ódio.
CAPÍTULO 5: O Lamento
O quinto capítulo do disco é introduzido com a faixa “RENIEGO”, primeira canção completamente lírica do disco. Tecnicamente se passa algumas horas ou dias após as agressões da história anterior. Nesta canção em especial, Rosalía amplia seu vocal para um espaço mais choroso, dando ainda mais vida à persona do disco, a mulher que nesta altura já se sente fracassada sentimentalmente e pessoalmente por ter um relacionamento abusivo.
A arte para “RENIEGO” mostra todos os elementos de um “fim”, uma ampulheta com o tempo findando, uma rosa ficando murcha, o espelho sendo quebrado, palmas formas de oração de um homem e de uma mulher para que o relacionamento mude.
CAPÍTULO 6: Clausura / Fechamento
Entrando ao sexto capítulo, Rosalía conta a visão da personagem através de um interlúdio denominado como “PRESO”, interpretado pela atriz espanhola Rossy De Palma. É quando a esposa finalmente percebe que a situação se torna insustentável, precisando ir até o inferno para ver o estado em que se encontrava sua vida.
“Por amor eu fui ao inferno e com dois anjos eu subi. Mas eu não me arrependo de ter caído, mas cair eu caí.”
Na arte de “PRESO” é possível ver todas as fases da lua, representando o que pode ser visto e aquilo que não pode.
CAPÍTULO 7: Liturgia
Liturgia é o sétimo capítulo do disco que narra e ilustra a descida da persona ao inferno devido ao seu relacionamento abusivo. “Liturgia” é um termo indispensável pelos cristãos, que seria o ato de Deus agir ao nosso favor. A letra de “BAGDAD”, deixa bem claro o ponto em que se encontra o emocional da esposa abandonada, declarando que não aguenta mais sofrer.
“Bonita, porém triste. Sentada de cabeça baixa ela batia palmas, enquanto ao redor eles passavam e olhavam para ela, mas não conseguiam vê-la. Sozinha no inferno, no inferno ela está presa.”
O trecho é uma exemplificação clara de que a sociedade ao redor enxergava a esposa como uma mulher feliz em aparências, quando na verdade ela estava sendo consumida pelo peso de seu relacionamento conturbado.
CAPÍTULO 8: Éxtasis / Êxtase
Êxtase é uma condição emocional intensa e adversa como prazer, desejo, medo e etc. Por algum motivo, a persona retratada por Rosalía decide dar uma nova chance ao esposo abusivo, pela primeira vez em tantos capítulos, a faixa apresenta novamente uma sonoridade mais animada.
“DI MI NOMBRE” relata uma situação sexual intensa, a personagem volta a acreditar nas promessas infundadas e vazias de seu esposo.
“Diga meu nome, coloque o seu corpo contra o meu e faça que o mal seja bom e o que o impuro seja abençoado.”
Rosália, “DI MI NOMBRE”
“Onde não há amor, põe amor e encontrará amor…”
São João Da Cruz
Na cena acima do clipe é possível ver em um quadro uma imagem de São João da Cruz. São João da Cruz é o Doutor Místico por antonomásia; da Igreja, o representante principal da sua mística no mundo, a figura mais ilustre da cultura espanhola e uma das principais da cultura universal.
CAPÍTULO 9: Concepción / Concepção
Chegando ao 9º capítulo e o mais triste deles, Rosalía novamente coloca seus vocais em um campo melancólico e choroso para retratar com profunda tristeza de um episódio que poderia a vir ser de extrema felicidade para a persona do “El Mal Querer”. Após o ato sexual, “Nana” fala sobre a gravidez da personagem.
Não recitado abertamente, mas a letra de “NANA” leva a entender que a persona possivelmente sofreu um aborto ocasionado pelas agressões do companheiro.
“Na porta do céu eles vendem sapatos. Para os anjinhos que estão descalços”
CAPÍTULO 10: Cordura
Na parte que antecede o ato final, entramos no estado mental da persona que luta para não ficar perturbado. “Cordura” é o oposto de loucura e traduz alguém em perfeito estado de sensatez, juízo ou prudência. “Maldición” mostra que a personagem entendeu que o sentimento de amor é uma mão de via dupla, sendo capaz de lhe causar dor, mas também com a capacidade de lhe causar felicidade.
A arte utilizada em “MALDICIÓN” mostra Rosalía andando sobre um fio de ouro, com uma balança em cada lado e em seu peito, uma espada. A arte é claramente uma referência a carta da justiça no Tarô, elemento místico citado no início do texto.
No baralho, a carta da justiça é a representação do carma em nossas vidas, pois tudo aquilo que decidirmos ou agirmos em nossas vidas nos trará as consequências futuras. A descrição corrobora, já que a letra deixa bem claro que a mulher precisa encontrar uma saída desse relacionamento tóxico e conturbado, nem que seja matando ou morrendo, representando aqui o extremo da mulher, o extremo das duas balanças, viver ou morrer?
O áudio de “MALDICIÓN” da a entender que durante a última briga do casal um deles é ferido gravemente, som retratado pelo som de uma espada cortando algo e em seguida o sangue caindo ao chão.
CAPÍTULO 11: Poder
Rosalía nos entrega o último ato de seu disco, o ato onde finalmente a esposa se liberta de seu relacionamento abusivo. Aqui a história convida ao telespectador a imaginar como a mulher se livrou de seu casamento, ainda que o capítulo de “Cordura”, mencione entre linhas que a única saída desta ligação conturbada era a morte, seja a da persona ou do marido.
“A Ningún Hombre” é de longe a faixa mais forte do projeto, sendo interpretada toda em acapella e de forma lírica, Rosalía recita que a persona por fim está livre novamente e como forma de jamais esquecer todo o sofrimento que passou, tatuaria as iniciais de seu algoz, para que seja lembrado por toda vida o que ele fez com ela enquanto casal.
“Vou tatuar na minha pele sua inicial, porque é a minha. Para me lembrar para sempre e lembrá-lo por toda a vida, o que você fez comigo um dia, o que você fez comigo um dia. “
“El Mal Querer” conta não só a história de uma mulher sofrida e humilhada por seu relacionamento, mas também retrata a realidade de diversas pessoas que sofrem diariamente com abusos e repressões, sejam elas por relacionamentos amorosos ou familiares.
Acima de tudo, a persona mostra a sua plateia que é possível ainda reafirmar como alguém que merece respeito e que merece ser livre, mesmo que isso lhe cause cicatrizes profundas.
O segundo álbum de Rosalía foi inteiramente composto pela artista, além de atuar também na produção das faixas e percussão de instrumentos em outras. A estética visual também foi toda imaginada pela musicista, o que faz o “El Mal Querer” ser o álbum artístico mais coeso e verdadeiro dos últimos 10 anos.
Já ouviram a palavra de Rosalía hoje?