​Sylvio Fraga lança seu quarto álbum Robalo Nenhum

Sylvio Fraga é um ser humano da arte. Já dirigiu museu – o Antônio Parreiras, em Niterói, é mestre em poesia pela New York University e autor dos elogiados livros – Entre árvores (selecionado por Armando Freitas Filho para a editora Bem-Te-Vi, 2011), Cardume (7 Letras, 2015), e Quero-Quero na Várzea (Todavia, 2022, no prelo). No entanto, é na música seu trabalho do dia a dia. Idealizador e diretor artístico da gravadora Rocinante, Sylvio já produziu álbuns de Jards Macalé e João Donato, Letieres Leite (o Quinteto e a Orkestra Rumpilezz), Marcelo Galter, Erika Ribeiro, Thiago Amud e outros. Como compositor, estreiou com o álbum “Rosto” em 2013. Ali já estavam delineados traços estilísticos que se radicalizaram ainda mais, três anos depois em “Cigarra no trovão” e depois em “Canção da cabra”, de 2019, assinado em parceria com o maestro Letieres. Agora, Sylvio Fraga lança seu quarto álbum, “Robalo Nenhum”, apresentado abaixo com texto de Leonardo Lichote.

Pesca maior que o mar

por Leonardo Lichote

Nonada na rede. Robalo nenhum. A jangada saiu com Chico, Ferreira e Bento — a jangada voltou nó.

Sylvio Fraga faz este álbum dessa pesca maior do que o mar, do que qualquer peixe: “Robalo nenhum”. Do vazio da rede, tece um oceano gota a gota — como nas primeiras palavras do disco.

“Gota a gota”. Palavras encontradas por Thiago Amud para a melodia gota a gota de Sylvio. Palavras cantadas sobre os atabaques de Luizinho do Jêje e Reinaldo Boaventura — rum e lé dando chão de terreiro para a liberdade sem gravidade de compasso, sem gravidade de discurso. Como poema — no ritmo e na carne.

Canção camerística, jazz candomblé — não por acaso o álbum é dedicado a Letieres Leite, por amor a ele mas também à sua música, que era ele. Ao longo do disco, sobre as claves afro-brasileiras de Luizinho e Reinaldo, inventa-se a sonoridade que se submete a nada além da canção em seu nado solto de robalo que não se enreda. “Igbadu”, reza aos orixás, condensa a sacralidade mundana do ritmo circular que atravessa o álbum. Sobre essa sacralidade mundana, navegam pelas 12 faixas o violão e a guitarra de Sylvio, o piano e os teclados de Marcelo Galter, a guitarra de Bernardo Ramos, o baixo de Bruno Aguilar, a bateria de Felipe Continentino e os metais de José Arimatéa. A esse núcleo se juntam, em diferentes momentos do disco, Marlon Sette (trombone), Alberto Continentino (baixo) e Durval Pereira (zabumba).

A despeito de sua intrincada engenharia musical, “Robalo nenhum” soa fluido — o álbum foi gravado quase integralmente ao vivo no estúdio da Rocinante, músicos tocando juntos. Como diálogo que mira menos no desenlace que no seu espalhar espiral.       

“Cadê vocês, meus irmãos?”, pergunta Sylvio, ecoando em seu “Mini-dilúvio” a indagação que brota no “Temporal” de Caymmi. “Minhas perguntas são tantas/ Minhas perguntas são poucas”, diz outra canção.

“Robalo nenhum” — no cesto, só perguntas tantas e poucas. Delas são feitas as canções, e o processo de fazê-las é descarnado — a faca cortando a barriga e revelando as tripas de robalo nenhum — ao longo do álbum. A engrenagem da canção se mostra na palavra que sai da pedra da melodia em “Ajambrada”; na costura de rimas em “ó” desenhando sentido e música em “Bodocó”; no canto incapaz de capturar o peixe fugidio, de capturar a resposta que já não está mais lá quando se lança a rede em “Fala do quê” (“Vento cabô de batê/ Momento cabô de durá”); na “palavra flor da nota” em “Mini-dilúvio”.

Sylvio olha para a canção, então, como quem olha para o mar. E olha também para os mares além da canção. Crua em seu núcleo voz-e-violão, “Conversa com uma gambá” sintetiza também com crueza: “Desejo apenas na vida/ Acertar o alvo fino/ De morrer depois dos pais/ De morrer antes dos filhos”. Seu existencialismo fundo de canção popular, versos diretos, recende a Fagner ou Belchior em vapores cabralinos — com o lamento do acordeon de um Dominguinhos encarnado no harmônio de Galter.

A tragédia (humana, política) da morte de Marielle Franco alimenta a dor e a esperança de “73 de janeiro” — referência ao 14 de março, data do assassinato. Apoiada numa dinâmica de leveza solar donatiana, seus versos apontam para o amor que “fulge maior” que a “mancha na alma” deixada pelo ato covarde: “Vamos em frente, não tem mais jeito”. “Robalo nenhum”, a canção-título, também afirma — sob a atmosfera tumultuosa do arranjo e dos versos de correntezas no abismo e silêncios no manguezal e clamores fellinianos — que “amor é o que há”.

A “moça que guarda nos seios o mar” que emerge dos acordes de “Concerto campestre” (e da tela homônima de Giorgione, na qual Sylvio se inspirou); a “lua verde” que batiza a canção de ninar que se canta para si mesmo na presença do filho; o “rosto talhado de guelras” que se esculpe nos silêncios de cristal de “Retrato de proletária”. Todos personagens da pesca inútil e inestimável de “Robalo nenhum” — a existência, que numa das canções se sonha enraizada num baobá útero eterno.

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